By junho 23, 2024

Por: Maristela Franco*

Boi na Linha: há cinco anos, atuando em favor da pecuária legal e com responsabilidade socioambiental

 

Em 2024, o Programa Boi na Linha completa cinco anos de existência, com balanço positivo e muita história para contar. O nome já dá uma pista de seus objetivos. Na Linha pode indicar tanto caminhar no sentido correto quanto colocar algo em evidência (comunicar). O programa criado em 2019 pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), tem desempenhado essa dupla função, apoiando uma cadeia de valor especialmente complexa como a pecuária de corte em sua trajetória rumo à sustentabilidade.

Nestes cinco anos de trabalho, o programa gerou uma série de protocolos, que hoje servem de referência para o setor, especialmente na Amazônia. “Quando visitei a região, em 2009, para ajudar o Greenpeace na auditoria de seu compromisso de desmatamento zero, ainda se usava ponto de GPS de curral para identificar as fazendas. Hoje, muito se avançou em tecnologia”, lembrou Marina Piatto, diretora executiva do Imaflora, no encerramento do 1º Diálogos Boi na Linha, evento realizado em 16 de novembro de 2023, em Marabá.

Segundo Piatto, é importante contar a história dessa iniciativa, para valorizar sua trajetória. “O objetivo inicial do Boi na Linha era harmonizar regras e procedimentos para monitoramento da compra de gado dos frigoríficos na Amazônia Legal, garantindo que os animais não vinham de áreas desmatadas ilegalmente, nem estavam associados ao trabalho escravo, crimes ambientais, invasão de terras indígenas ou unidades de conservação, como determinava os TACs (Termo de Ajustamento de Conduta) assinados pelas indústrias com o MPF, a partir de 2009”, relembra a executiva.

Diretora executiva do Imaflora, Marina Piatto já atuou na linha no Boi na Linha

Em cinco anos, o Boi na Linha mapeou 158 frigoríficos (65 no Pará, 52 no Mato Grosso, 16 no Acre, 15 em Rondônia e 10 no Amazonas). Destes, 111 assinaram TACs, embora apenas 59 tenham participado do 1º ciclo unificado de auditorias. “Com a experiência acumulada, o programa ganhou envergadura, tornando-se também um fórum de debates e um núcleo de apoio técnico à cadeia pecuária bovina”, assinala o procurador da República Daniel Azeredo, que acompanhou o nascimento da iniciativa do Imaflora, num contexto complexo.

Retrospectiva necessária

“Enfrentamos muitas dificuldades na implementação dos Termos de Ajustamento de Conduta no Pará, assinados com os frigoríficos em um momento crítico”, conta Azeredo. Para se ter uma ideia, em junho de 2009, o Ibama e o MPF abriram ações na Justiça, com multas no valor de R$ 2 milhões contra fazendas acusadas de desmatamento e contra os frigoríficos para os quais elas vendiam gado, baseando-se no princípio da corresponsabilidade. O Ministério Público (MP) também recomendou às redes de supermercado que não comprassem mais carne dessas indústrias e lançou a campanha “Carne Legal” para conscientizar os consumidores do problema. Na mesma época, o Greenpeace publicou o documento-denúncia “Farra do Boi”, que sacudiu o setor, levando grandes redes varejistas e marcas famosas como Nike, Adidas, Timberland e Unilever a boicotarem produtos pecuários provenientes da Amazônia Legal.

Essa forte pressão levou à assinatura do TAC por vários frigoríficos paraenses. Já os três grandes (JBS, Minerva e Marfrig) firmaram com o Greenpeace o Compromisso Público da Pecuária (CPP), por meio do qual se comprometiam a não comprar animais provenientes de áreas desmatadas. Os acordos foram assinados em 2009, mas sua execução esbarrou em muitas complexidades técnicas. “Nós, do MP, começamos a observar variações gritantes nos critérios de monitoramento do gado. Uma empresa bloqueava um pecuarista, enquanto outra liberava; uma aceitava, digamos, até 2% de sobreposição sobre áreas indígenas ou unidades de conservação, enquanto outra trabalhava com 3%. Isso era muito ruim; gerava reclamações, dificultava análises comparativas e colocava alguns frigoríficos em desvantagem competitiva, contrariando a Constituição, que prevê igualdade de concorrência”, relata o procurador.

Para complicar ainda mais o cenário, muita coisa aconteceu nos 10 primeiros anos de aplicação dos TACs. Em 2013, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) e as maiores redes de varejo do País se comprometeram publicamente com a eliminação do desmatamento de suas cadeias de fornecimento e três anos depois (2016), passaram a monitorar os frigoríficos, também enfrentando dificuldades neste processo, devido à disparidade de regras. Paralelamente, houve uma revolução tecnológica na área de monitoramento: os frigoríficos passaram a gerar mapas das propriedades com base em informações do Cadastro Ambiental Rural (antes só tinham pontos de GPS) e as empresas de georreferenciamento criaram ferramentas mais eficientes, o que lhes possibilitou “customizar” processos, aumentando ainda mais as discrepâncias. “Foi complicado fazer nosso primeiro ciclo de auditorias, em 2017”, conta Daniel Azeredo.

Nascimento e crescimento do Boi na Linha

Lisandro Inakake de Souza acompanhou o surgimento do Programa

Cientes da necessidade de padronizar regras, o chamado G6 (Grupo dos Seis), composto pelos três maiores frigoríficos (JBS, Marfrig e Minerva) e as três maiores redes varejistas do País à época (Carrefour, Pão de Açúcar e Walmart) se reuniu, entre 2017 e 2018, para elaborar um primeiro rascunho de protocolo harmonizado. O movimento buscou sair à frente da iniciativa externa Colaboração Florestas e Agricultura (CFA), financiada pela Gordon and Betty Moore Foundation, que havia desembarcado no Brasil com a proposta de construir uma cadeia de suprimento da carne livre de desmatamento. “Como os frigoríficos e supermercados já estavam trabalhando nisso há um bom tempo e não queriam seguir algo vindo de fora, decidiram agilizar o processo de harmonização de regras e nos convidaram, em 2018, para lapidar esse trabalho, pois tínhamos experiência com certificação de fazendas e de indústrias de cadeias agropecuárias,  além de ter apoiado por dois anos a análise de auditorias do Compromisso Público da Pecuária (CPP) do Greenpeace”, relembra Lisandro Inakake de Souza, gerente de projetos do Imaflora.

Foi assim que nasceu o Programa Boi Na Linha. “Ficamos todo o ano de 2019 discutindo o rascunho organizado pelo G6 e seus prestadores de serviços, definindo parâmetros, qualificando exigências e negociando com o Ministério Público, até chegar à primeira versão do Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado da Amazônia, lançada em 2020 e atualizada em 2021”, ressalta Lisandro.

Por ter se tornado referência para o setor, este protocolo, segundo ele, passou a ser usado não apenas no Pará, mas também em outros Estados: Acre, Rondônia e Mato Grosso e Amazonas. O documento também passou a ser usado no âmbito do CPP, que continua a ser aplicado pela JBS, Minerva e Marfrig, mesmo após a saída do Greenpeace do compromisso, em 2017, em função das operações Carne Fria e Carne Fraca, deflagradas pelo Ministério Público naquele ano.

Em 2021, o Imaflora lançou ainda o Protocolo de Auditoria dos Compromissos da Pecuária na Amazônia e, em 2022, o Protocolo de Monitoramento dos Fornecedores de Carne do Varejo. “A harmonização de regras e procedimentos foi o principal mérito do Boi na Linha. Colocar todo mundo sob a mesma régua, usando as mesmas fontes de informação, aplicando a mesma tecnologia foi bom para a cadeia”, ressalta Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Em 2023, a entidade assinou um termo de cooperação com o Imaflora, para que todos os seus associados adotem o Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado do Boi na Linha, começando pelas 17 empresas filiadas que atuam na Amazônia e são responsáveis por 80% dos abates com SIF neste bioma, o equivalente a 5,65 milhões de cabeças.

Segundo Sampaio, 87% desse total de bovinos já são monitorados pelo protocolo e 82% são auditados. “Nossa ideia é estender a experiência do Boi na Linha a outras regiões do Brasil e estimular a autorregulamentação do setor, de forma que qualquer empresa associada, esteja onde estiver, se ainda não monitora fornecedores de gado, saiba por onde começar e receba treinamento para isso”, diz ele. “Frigoríficos de Estados como o Espírito Santo ou do Paraná, por exemplo, que nunca fizeram nada, porque o desmatamento não estava em seu radar, poderiam iniciar o monitoramento com base em referências já validadas, o que facilita muito o trabalho. Queremos ter um programa setorial com participação de todos, independentemente de terem assinado TAC ou não. Futuramente, poderíamos até criar um benchmarking de compra responsável da Abiec e apresentar seus resultados ao mercado internacional”, projeta o executivo.

Ciclo unificado de auditorias

Outra contribuição importante do Programa Boi na Linha, segundo os procuradores do MPF, foi a harmonização de regras para viabilizar o 1º Ciclo Unificado de Auditorias da Amazônia, adotando as mesmas bases de dados, mesmos procedimentos e mesmo cronograma. “Este foi um marco importante do Boi na Linha, porque, antes, cada Estado avaliava o trabalho de um jeito e apresentava relatórios com diferentes conjuntos de informação. O 1º ciclo unificado avaliou compras de gado feitas entre julho de 2020 e dezembro de 2021, mas nossa meta é ir agilizando os processos para apresentar o desempenho das empresas no ano anterior”, diz Lisandro Inakake, do Imaflora, salientando que apenas o Mato Grosso não conseguiu entregar as auditorias no prazo estabelecido, por problemas técnicos.

“Para nós do MPF, o mais importante é aumentar o número de frigoríficos participando das auditorias. De nada adianta eles assinarem o TAC e não comprovarem que estão cumprindo os compromissos assumidos. O ciclo unificado exigiu uma grande logística de levantamento de GTA (Guia de Trânsito Animal) e de CAR (Cadastro Ambiental Rural) para análise. Foi preciso o Imaflora fazer uma ponte com os Estados (PA, MT, AC, AM e RO), que têm diferentes políticas de guarda desses documentos, para viabilizar as auditorias”, relata o procurador Ricardo Negrini. Segundo ele, a unificação do cronograma também foi essencial, porque as empresas são concorrentes e precisam receber tratamento igualitário. “Nosso balanço é positivo. No Pará, por exemplo, os frigoríficos auditados responderam por 78% do gado abatido ou exportado pelo Estado, o melhor resultado que já tivemos. O percentual de inconformidades caiu de 10,4%, na auditoria de 2018, para 4,81%, na de 2023”, diz ele.

O próximo passo, segundo o procurador, é notificar os frigoríficos que não assinaram TACs e comprovadamente adquirem bovinos de áreas com desmatamento ilegal. “Passamos um ano reunindo provas irrefutáveis sobre os delitos dessas empresas, que poderão ser alvo de ações judiciais, caso não atendam às demandas do Ministério Público. Nosso foco são frigoríficos de porte médio, cujos abates individuais correspondam a 0,3% do total de bovinos processados pelas indústrias do Estado”, explica Negrini. Outra ação prevista para 2025, segundo ele, é a obrigatoriedade de monitoramento dos fornecedores indiretos. “Neste ano, já vamos enviar relatórios aos frigoríficos sobre seus índices de não-conformidade neste quesito, para que fiquem cientes e tomem providências”, informa o procurador, que vê ainda grandes avanços no Boi na Linha em futuro próximo, como o lançamento do Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado da Amazônia 2.0 e a atualização dos TACs, para padronizar seu conteúdo e excluir cláusulas não aplicáveis.

*Maristela Franco é jornalista, atua na Revista DBO, um dos principais veículos especializados em Pecuária da imprensa brasileira, e escreve pautas especiais exclusivas para o Programa Boi na Linha